Sem justiça social, não há mitigação climática na América Latina

A agenda de combate às mudanças climáticas vai além das metas dos NDCs e está obrigatoriamente atrelada à promoção da justiça social e à responsabilização dos países do Norte Global em promover apoio financeiro justo e transferência de tecnologia.

As sirenes estão ligadas permanentemente. As secas prolongadas no Chile, o baixo nível dos rios e lagos no Brasil, no Panamá e na Argentina, os incêndios em florestas na Califórnia, na Grécia, na Argélia e na Sibéria, as inundações em área urbana na Alemanha, o extremo calor na costa oeste da América do Norte. É em meio a essas e outras expressões simultâneas da crise climática que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão das Nações Unidas, publica o seu 6º informe. O tom de “alerta vermelho” pode não ter sido novidade para muita gente. Mas o foco está na emergência das ações políticas para a tomada de decisões mais assertivas. Entretanto, como aponta o relatório, cada região do mundo é afetada de forma diferente. E na América Latina, assim como no Sul Global, o desafio é ainda maior porque existe uma estrutura de desigualdades que é fruto do processo de colonização e do modelo de desenvolvimento baseado na degradação do meio ambiente e na alta concentração de riqueza.

O relatório do IPCC é como um exame médico, uma tomografia. Ele identifica os problemas, as regiões mais afetadas e onde é possível regenerar, apontando causas e consequências. Mas o remédio é uma decisão cidadã e política, que exige muita cooperação. O grupo formado por 234 cientistas do IPCC comprovou que nós, humanos, causamos o aquecimento global. E não paramos de emitir gases de efeito estufa desde a revolução industrial. O clima está cada vez mais desestabilizado, e as emissões continuam aumentando. Apesar de toda a retórica política, a recuperação tem sido quase nada verde, e com desafios em várias dimensões: ambiental, social, econômica e política.

Na América Latina aos desafios de mitigação climática é preciso somar a erradicação de injustiças sociais profundas. De acordo com o relatório “Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo em 2020”, das Nações Unidas, 47 milhões de pessoas passaram fome na região em 2019. E se a política alimentar não mudar, cerca de 67 milhões viverão em insegurança alimentar – nos seus mais diferentes níveis – até 2030. A geração de emprego e renda passa por uma crise profunda. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 11% da população latino-americana esteja desempregada este ano. Em 2020, a pandemia causou aproximadamente 30 milhões de perdas de emprego. A esta situação, soma-se cerca de 158 milhões de pessoas na informalidade, o que representa 54% das 292 milhões que integram a força de trabalho regional. Outro desafio regional é a habitação. Em outubro de 2020, o Banco Mundial alertou que duas em cada três famílias latino-americanas não têm moradia com padrões mínimos de bem-estar e segurança. Sem água, esgoto, ventilação, transporte, eletricidade ou acesso à Internet as cidades da região se tornaram o epicentro da pandemia de coronavírus. Este é o contexto da região que concentra 8% da população mundial e responde por quase um quarto de todas as mortes por covid-19 registradas até junho de 2021.

Assumir a responsabilidade histórica para a mitigação climática com recuperação verde na América Latina exige uma cooperação regional e com o Norte Global que possibilite justiça social e econômica. A ideia de recuperação verde como uma oportunidade é interessante, mas não dá conta da complexidade do desafio gigante que o continente deve enfrentar. As condições climáticas e sociais requerem mudanças radicais para garantir a segurança da vida do povo latino-americano. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 2020 a retração na economia regional foi de 6,7% e a expansão em 2021 não vai dar conta dos desafios. Mais do que gerar empregos verdes, precisamos de uma estrutura social e produtiva para descarbonizar a economia, promovendo acesso a direitos fundamentais e regenerando biomas, como a Amazônia.

O barulho das sirenes é quase ensurdecedor. O planeta terra não terá chance se países com governos e elites negacionistas continuarem desacreditando o trabalho de cientistas, destruindo florestas por uma economia extrativista e primária, retirando direitos de povos originários, ameaçando a vida de ambientalistas e defensores de direitos humanos. Não há mais tempo para atrasos. Vamos precisar mudar o relógio e usar novas métricas sociais que nos conduzam para um paradigma de dignidade coletiva comum de Sul a Norte, de Leste a Oeste.

O alerta vermelho que o relatório do IPCC grita, especialmente, para a América Latina, é a emergência por ações baseadas em evidências, com dados desagregados, investimento justo e cooperação regional. Para isso, é urgente que os países que se beneficiaram com as elevadas emissões que geraram a crise cumpram a responsabilidade que adquiriram por meio de diversos tratados internacionais, especialmente o Acordo de Paris e paguem suas dívidas climáticas – com apoio financeiro e transferência de tecnologia e capacidades de transição para os países que mais precisam. Dentre essas medidas, vale mencionar a urgência de aumentar o compromisso de financiamento, cuja meta de 100 bilhões de dólares por ano até 2020 não foi atingida e deve ser consideravelmente ampliada. Não há mais espaço nem tempo para declarações políticas evasivas. É preciso demonstrar formas de alcançar a transformação, garantindo que ela seja radicalmente justa e equitativa.

Sylvia Siqueira e Pedro Glatz, diretora executiva e coordenador de conteúdo de Nossa América Verde.

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